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A Chaleira

Deixou o suor escorrer até o canto da boca. O clima estava mais quente e seco do que o normal. Os pássaros não cantavam. Os dias estavam longos. Nem mais fáceis, nem mais difíceis. Apenas diferentes. Agia com receio. Tinha medo. Era noite. Estava escuro.

Mas Josué seguia firme. Caminhava em passos lentos e suaves. A vida estava lá. A dor soava no peito como o canto de lamentação do Urutau. A folhinha, ainda com a mesma data, com imagens de Santa, suja e empoeirada, estampava o cômodo vazio. O relógio, sem corda, lá no canto, também não servia mais. Marcavam o início do fim. Estranho era aceitar o novo ritmo. Sozinho,

preciso e inacabado, ocupava o espaço numa exatidão ora distante e ausente, ora tão presente. Josué fazia-se outro. Estava mudado. Esperançoso, não precisava isso. Havia perdido muitos. A companheira foi a primeira, em muitas. Não teve tempo. Partiu sem dizer adeus.

Acendeu o fogo. A madeira queimava como a luz que teima em não se abrir. Demorou, mas tomou o fogão. A fumaça preencheu o espaço. O cheiro da Candeia encheu o peito. Era doce, de infância. Abriu o sorriso do velho. Lembrava os carinhos do passado. Assustado, Josué esboçou correr, mas preferiu ficar ali, sentado e calado. O fogo agora consumia a madeira. Em altas labaredas, estava intenso. As lembranças misturavam-se num vai e vem constante. A luz coloria o silêncio. Iluminava. Empoderava. O gosto pelo novo estampou o olhar. Não se alegrava. Não se deixava levar por isso. Tinha razões para chorar e para correr. Preteriu a solidão. Abriu-se. Abandonou-se.

Colocou a chaleira no fogo. Velha e manchada, retorcida pelo tempo, suja e engordurada, aquecia a água lentamente. Movia-se em ondas, debaixo pra cima, em agitação profunda. Josué acompanhava o movimento. Era intenso. Lá dentro a água clara e límpida em turbilhões. A chaleira, inerte. A luz, intensa. O cômodo, claro e aquecido, em nítidos detalhes, com marcantes contrastes. Por fora a chaleira mantinha-se firme, dura como o ferro. O calor era incapaz de torná-la brasa. O fogo não a alterava, em nada. Permanecia ali: rígida, estática, suja e velha. Intrépida. Atormentada. Nada a sucumbia. Já a água, impulsionada pelo fogo, no escuro, movia-se intensamente. Borbulhava. Rompia a inércia. Mantinha-se ativa, viva. O externo a movia. A luz propagava-se ora pelo fogão, ora pelo cômodo, em constante movimento. Preenchia claros e escuros. Sincronismo de água e luz. Mas a chaleira, nada a alterava. Nada a movia.

Josué estava ali. Olhava atentamente o relógio e a folhinha acompanhando o barulho da água. Fitava-os na parede. Os olhos seguiam o movimento da luz. Não se impressionava, mas mantinha o receio e o medo do borbulhar da água. Esquivava-se. Incomodava. Vinha de dentro. Confundia. A luz não penetrava. A água se movia. A luz penetrava, a chaleira desfazia. Consciente, mergulhou. Buscou a sensatez. Buscava a lucidez.

Josué era chaleira e água. Era dois. Um no fogo, outro na luz.

Desprendeu-se da folhinha. Desatrelou-se do relógio. Os pássaros cantavam. O clima já não importava mais. Em movimento, nem fácil e nem difícil, deixou o suor entrar pelo canto da boca. Seguiu os efeitos do fogo. Ouviu o canto do Uirapuru. Vencia a distopia encontrando a própria luz.

Josué agora era um só.

Rodrigo. F. Bianchi –  Estudante de Psicanálise
Instagram: @rfbufop

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